A todos os idosos e idosas que compartilharam suas preciosas memórias para realização deste trabalho, em especial à Vovó Geraldina, que sempre me contou as histórias do cangaço
RESUMO
Este trabalho tem como tema geral a memória social do cangaço na década de 1930. Seus objetivos são estudar a memória do cangaço no povoado do Maracujá, buscando compreender a sociedade que esses indivíduos estavam inseridos na década de 1930. A metodologia utilizada se baseia nas entrevistas feitas com idosos que conviveram na infância e na adolescência com o fenômeno, bem como os exemplares do jornal O Lidador que circulou na cidade de Jacobina, entre as décadas de 1930 e 1940. Todas as fontes dialogaram com produções historiográficas que puderam embasar as discussões a respeito do fenômeno e de outros aspectos relacionados a ele, como as secas, a cristalização da memória e a representação do cangaço.
INTRODUÇÃO
Em meio aos relatos ouvidos durante toda a minha vida sobre o cangaço, os crimes cometidos pelos cangaceiros, as atrocidades e a desordem social que esses indivíduos causaram, desenvolvi um fascínio por essas histórias de modo que sempre tive desejo de pesquisar essa temática de forma mais profunda. Por isso, este trabalho inicialmente deu enfoque à memória do fenômeno cangaço na busca de compreender por que nas regiões onde os grupos e subgrupos de cangaceiros passaram se desenvolveu uma imagem do fenômeno exclusivamente voltada para a figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Com o desenvolvimento da pesquisa não pude fechar meus olhos em relação às demandas e interrogações sobre a temática. Questões como o papel dos jornais na construção da memória do cangaço e sua ação disseminadora de notícias, bem como a construção de uma memória mística e representativa desse fenômeno na região do Maracujá, no município de Serrolândia (BA), passaram a ser questões relevantes na pesquisa.
Cresci em uma comunidade pequena chamada Maracujá, onde falar sobre o cangaço se tornou algo comum. Nas rodas de conversa dos idosos da comunidade, ouvi dizer que Lampião havia morrido perto do povoado, e muitas outras histórias que despertou em mim um desejo intenso de saber o porquê, mesmo depois de muito tempo, das histórias do cangaço continuarem vivas na memória daqueles idosos de modo que eles contam os fatos como eles tivessem acontecido recentemente. Interessante dizer que o que mais me prendia nessas histórias eram os relatos que mostravam um contexto de mitificação de Lampião e dos cangaceiros que estavam continuamente em volta de uma esfera simbólica muito forte.
A busca por vestígios do passado para melhor compreender essa memória voltada para os fatos e acontecimentos que marcaram a vida cotidiana dos moradores do Maracujá, que ali viviam na década de 1930, partiu do estudo da memória colhido por meio dos relatos orais. Este foi o melhor caminho a ser percorrido, tendo em vista que pude ter uma visão mais ampla das formas de vida dos grupos que habitavam essa região desde os anos 1930. É como diz Verena Alberti[1] “A história oral é hoje um caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a forma de vida e escolha de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade[…]” (…).
Foi através das memórias reveladas por meio dos relatos orais que tive suporte para desenvolver uma discussão a respeito desse fenômeno e suas implicações na vida dos que conviveram de perto com os desajustes sociais causados pelo movimento e especialmente como foram capazes de se ajustarem ou mesmo criarem formas de sobrevivência, estratégias, ajuda mútua, diante das dificuldades decorrentes do efeito de instabilidade e desordem social.
O estudo das representações na memória das pessoas que foram entrevistadas permitiu compreender melhor o universo social em que esses indivíduos estavam inseridos na década de 1930. Esse período foi marcado por muitos acontecimentos que exigiram dos moradores mudanças em seu modo de viver. Além do fenômeno cangaço, essas pessoas tiveram que enfrentar uma forte seca que atingiu todo o sertão nordestino. Seca e cangaço são fenômenos que andam juntos nessa pesquisa, pois na memória dos entrevistados os dois estão sempre associados.
Partindo disto, primeiro tive que compreender a realidade social, cultural do espaço ocupado por esses indivíduos, discutindo esses lugares em uma perspectiva do universo sertanejo. Sendo assim, parti para estudos já elaborados sobre esse espaço ecologicamente e culturalmente ocupado que é o sertão. Essa é a proposta discutida no primeiro capítulo da referida pesquisa, Para tanto, fiz uma análise da discussão sobre sertão com base em obras consagrados como a obra de Durval Muniz de Albuquerque “A Invenção do Nordeste e outras artes”, Janaina Amado em artigo “Região, Sertão, Nação”, entre outras, que me ofereceram um panorama das perspectivas desse ambiente chamado Sertão e todas as suas contradições na realidade social de seus moradores.
Dentro da temática sertão também fiz uma análise do que se tem produzido sobre região e sua concepção teórica, uma vez que essa pesquisa está elaborada em uma perspectiva de história regional. O estudo de história regional que embasou essa discussão faz parte de estudos elaborados nas universidades mexicanas e tomei como base o conceito de estudo regional de Luiz Gonzáles um pesquisador ainda pouco conhecido no Brasil.
A nova guinada em relação à problematização da palavra região e seus estudos e conceitos, partem principalmente de estudos em universidades latino-americanas, produzidos por historiadores que estudam os microespaços. Luiz Gonzáles é um dos pioneiros nesta área.
Para se pensar região sob outras perspectivas, Luiz Gonzáles em seu livro “Pueblo en vilo. Microhistoria de San José da Gracia”, publicado pela primeira vez em 1968, traz nessa obra, que o consagrou, ricas informações para quem quer trabalhar com história regional. Ele aborda sobre a vida cotidiana da comunidade de San José da Gracia, revelando através das fontes orais e escritas à vida social, política e econômica em que aqueles indivíduos estavam inseridos.
Como os espaços são dinâmicos e abertos a influências nacionais e como isso acaba interferindo nas vivências sociais dos grupos existentes, reforçando a ideia de que a história generalizante e oficializada não dá conta de compreender algumas particularidades existentes em determinadas regiões, que ficam quase sempre marginalizadas pela história que busca sempre fatos imponentes e grandes heróis nacionais. Esse estudo permite romper com as ideias pré-estabelecidas e quase sempre preconceituosas que herdamos dos cânones da grande história, dos grandes heróis.
Reduzindo essa escala de observação para uma visão mais restrita, cheguei ao lugar exato da pesquisa, a comunidade do Maracujá, mas não como ela é hoje, nem seguindo divisões geográficas. Cheguei nesse espaço na década de 1930, período definido anteriormente e fortemente marcado pelas instabilidades sociais ocasionadas pelo fenômeno cangaço. A última parte do capítulo apresenta como eram as comunidades rurais e como viviam os moradores da região do atual Maracujá.
No segundo capítulo, me dediquei a fazer um roteiro do fenômeno cangaço de forma mais reduzida no Nordeste e de configuração mais intensa na Bahia, tomando como base algumas obras que tratam da temática, a exemplo: “Guerreiros do Sol violência e bandidismo no Nordeste do Brasil” de Frederico Pernambucano de Mello e a obra de Oleone Coelho Fontes “Lampião na Bahia”, que acabaram dando a base para a elaboração do primeiro momento do segundo capítulo dessa pesquisa. Também utilizei os jornais impressos, especificamente o jornal regional O Lidador como divulgador e criador de uma imagem do cangaço na época, contribuindo para a formação de uma memória muito representativa do fenômeno na região.
Utilizei como fonte o jornal impresso, que ao meu ver, tem um papel de grande interesseiro, ele vive daquilo que o povo quer ouvir, para tanto, o mesmo produz aquilo que lhe garanta a estabilidade e o sucesso no gosto dos leitores, fazendo isso, ele desenvolve uma imagem vez ou outra distorcida da realidade, desenvolvendo assim uma imagem própria daquilo que se quer transmitir. Ele também é competitivo e tem interesses convenientes, mas é levando em consideração essa dinâmica de possibilidades que o jornal oferece de pesquisa e análise da realidade social que o jornal O Lidador fonte indispensável nessa pesquisa, possibilita um olhar sobre a década de 1930 na região de Jacobina.
Dentro da discussão do jornal como meio pelo qual se formava uma imagem ou representação do cangaço, dentre os muitos estudos famosos sobre representação, usei o conceito de que as representações são construções desenvolvidas por um determinado grupo que a constitui como verdadeira. Esse é o conceito desenvolvido por Roger Chartier em sua celebre obra “A história Cultural: entre práticas e representações”.
O terceiro capítulo da pesquisa, se dedica especificamente ao estudo da memória dos idosos do povoado do Maracujá, observando as representações nos discursos, toda a simbologia e misticismo que estão sempre acompanhando cada relato colhido a respeito do que foi e o que é o cangaço na memória dos entrevistados. Fiz uma breve análise sobre a representação da figura de Lampião na memória coletiva e como esse líder do cangaço contribuiu para a formação de uma autoimagem, autopromoção de si mesmo, que circularam por meio dos jornais da época.
Tomei como base a riquíssima obra de Maurice Halbwachs “A memória Coletiva” , no qual discute a construção da memória e como a mesma se constitui, porque os indivíduos vivem e se relacionam socialmente. Para Halbwachs, “Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva.” GONZÁLEZ, Luis González Y. Pueblo en vilo microhistoria de San José de Gracia (México: Ed. Colegio de México, 1968). Sendo assim, busquei trazer nesse capítulo, questões que partem das falas dos idosos entrevistados, aquilo que é comum que teve fixação na memória coletiva, porque pretendo compreender não o particular, mas o meio coletivo de convivência desse grupo, porque até mesmo as lembranças individuais estão sujeitas a uma rede coletiva, porque ninguém é só, estamos imersos em um meio social.
O grupo social escolhido para dar forma e fonte a essa pesquisa, foram os idosos do povoado do Maracujá com idade de 90 a 111 anos e que na década de 1930, alguns ainda crianças, conviveram com o fenômeno do cangaço na zona rural de Jacobina. Para estudar a memória dos idosos entrevistados, foi necessário fazer uma análise, partindo do contexto social desses indivíduos que ainda se lembram dos fatos que se relacionam direta ou indiretamente ao tema proposto. Busquei pontos em comum e que divergem nos relatos a respeito do cangaço na região.
Constatei na análise desses dados que as lembranças e os discursos a respeito do cangaço estão cheios de símbolos e representações. E no momento da evocação dessas lembranças, pude perceber que as representações e símbolos ainda vivem na memória dos membros do grupo. Eles não apenas lembram como diz Halbwachs, elas passam a ser ao mesmo tempo reconhecidas e reconstruídas. Sendo assim, os símbolos e as representações continuam a se reproduzir dentro dos relatos do grupo. E foi dessa forma que o cangaço se cristalizou na memória daqueles indivíduos que não hesitam em contar os transtornos vividos naquele tempo de muita instabilidade social.
OBS: Veja a matéria na íntegra acessando http://www.meussertoes.com.br/tag/bahia/
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