Às vezes é bem interessante como fatos das nossas vidas se cruzam com outras histórias para que algum feito possa ser realizado. Muitas vezes nem desconfiamos quando os acontecimentos vão tecendo sua trama, produzindo uma sintonia que mais lá na frente pode fazer toda diferença para muita gente.
Ceci Alves, até então uma produtora de eventos, trabalhava no ramo de hotelaria quando resolveu, em 2018, abraçar sua verdadeira vocação: a gastronomia. E lá se foi ela ser padeira. A empreendedora criou o Brisa Pães Artesanais e levou para o seu trabalho o principal ingrediente, a valorização da cultura alimentar e produtos de pequenos agricultores.
Ceci é adepta da Ecogastronomia, um movimento que valoriza essa cultura e nelas os pequenos produtores locais. “Sempre me incomodou muito o fato de as pessoas darem muito mais valor aos produtos importados do que aos produtos locais”, diz.
E foi nesse mesmo ano em que Ceci apostou no seu talento que acontecia um outro fato bem interessante para a cultura e economia solidária baiana. Uma lei estadual tornou a espécie licuri como patrimônio biocultural do povo baiano. O ariri e umbu também foram reconhecidos nessa categoria.
O licuri, aricurí, licurizeiro, nicurí, ouricurí e urucurí , como também é chamada a espécie, leva o nome científico de Syagrus coronata. Com uma média de mais de 1.300 coquinhos, os cachos do fruto nascem em uma palmeira e fazem parte da memória afetiva de Ceci.
O alimento tem muita a ver com o processo de transformação de Ceci, que busca alinhar a gastronomia com a valorização dos produtos da terra. E a amêndoa tem um importante papel na sua vida, bem como faz parte da sua mais terna lembrança. O mesmo pode se dizer dos pequenos agricultores que precisam de gente como Ceci, que valoriza o trabalho das cooperativas no interior baiano e fazem parte da economia solidária.
“O licuri me traz uma memória afetiva muito grande porque além daquele rosário de licuri que a gente comia muito quando criança, no interior a gente achava ele no coquinho, sentava na calçada e com uma pedra na mão, ia quebrando (as amêndoas). A minha relação com o alimento vem muito dessa minha criação de casa, do interior, das comidas mais tradicionais, dessa culinária”, diz Ceci, bem feliz com sua escolha.
E o licuri tem é história. O professor Aurélio José Antunes de Carvalho, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (Ifba) explica que o licuri é “uma planta nativa já utilizada pelos índios e isso foi encontrado, por exemplo, em achados arqueológicos no município de Brejo de Madre de Deus, que encontrou restos de licuris junto aos corpos que eram enterrados. Portanto, os indígenas usaram bastante o licuri”, revela.
O professor conta ainda que o fruto é fundamental para a alimentação de alguns animais que só existem na Bahia e tem um processo de recomposição dessas espécies, a exemplo da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). O alimento ´basico dela é o licuri. "São aves muito bonitas que há 20 anos estava restrita a uma população de 120 indivíduos e hoje conta com mais de 1000. A partir disso, o licuri assume uma importância muito grande para a garantia da fauna”, explica, deixando evidente a importância do fruto.
Carvalho reforça que grande parte hoje da questão comercial do licuri passa pela economia solidária. “Hoje, temos dois grades polos que estão trabalhando com isso. Um deles é a Cooperativa de Produção da Região do Piemonte da Diamantina (Coopes), que fica situada em Capim Grosso e a outra cooperativa chamada Cooper Sabor que fica situada em Monte Santo. Duas cooperativas que trabalham com o licuri que geram renda no semiárido. Ele é considerado um agroextrativismo dos mais sustentáveis dentro da caatinga”. Explica o professor.
Renata Silva, gestora da Coopes através do projeto Aliança Produtiva, Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional – CAR da Secretaria de Desenvolvimento Rural do Estado da Bahia conta sobre a importância da amêndoa, um dos principais produtos da cooperativa.
“O nosso trabalho é ampliar a comercialização, fortalecer a base produtiva, que são as mulheres que trabalham diretamente na colheita do licuri, e trabalhar na inovação tecnológica da entidade”, afirma Renata.
“Comecei a fazer pães, mas não queria ficar só com a panificação e aí eu faço os acompanhamentos e muitos dos acompanhamentos trazem essa valorização dos produtos locais, de um pesto de coentro com licuri, de fazer bolos utilizando os produtos da terra. Eu sempre procuro trazer essas referências locais para os meus produtos”, diz a padeira.
Ceci afirma que todas as referências que traz para a gastronomia têm muito a ver com sua infância. Está viva em sua memória o licuri como um dos alimentos que ela preza na culinária. “A rua que a gente morava no interior tinha muita criança. E quando a gente terminava de comer o licuri, a gente pegava as cascas e fazia guerra, jogava um no outro, era como um jogo de baleado, quem levasse mais, perdia, saia do jogo”, lembra.
“Nós é nós e o licuri é um coco”, diz a frase que se escuta muito, principalmente no interior baiano, onde o coquinho está presente na vida das pessoas. O professor Aurélio é quem arremata a história.
“Eu escutava muito desde criança. ‘Nós é nós e Licuri é um coco’, que é para dizer assim: a nossa amizade é forte, então, nós é nós, ou seja nós podemos e o licirui é um coco”, conta.
Quer mais sintonia do que esta entre Ceci, o licuri, o professor, a cooperativa e o universo? É para festejar que vamos ensinar no Histórias & Sabores um pão à base de ouricuri, licuri, nicuri e tantos outros nomes desse coquinho que sempre fez a alegria de muita gente.
Neste fim de semana e um prazeroso feriado, o Histórias & Sabores resgatou uma ótima receita de pão de licuri para celebrar o Dia Mundial do Pão, homenageado em 16/10. O ingrendiente é um dos mais saudáveis e típicos da nossa região! Abaixo, deixo para vocês a receita do Pão de Licuri de Ceci Alves.
Pão de Licuri
400g de farinha de trigo branca
100g de farinha integral
300ml de água
100g de fermento natural ou 2g de fermento biológico
12g de sal
50g de licuri
10g de azeite de licuri
2g de pimenta rosa (aroeira) a gosto
12g de sal
50g de licuri
10g de azeite de licuri
2g de pimenta rosa (aroeira) a gosto
Modo de fazer
Modele uma bola, volte a massa para a tigela e cubra com filme (ou pano de prato). Deixe descansar por uma hora ou até dobrar de tamanho.
Unte com azeite de licuri duas formas para bolo inglês de 22cm x 10cm (se a forma for antiaderente não há necessidade de untar).
Assim que tiver crescido, transfira a massa para a bancada e divida ao meio. Achate delicadamente cada uma das metades até formar um retângulo. Para modelar os pães, dobre a base do retângulo (lado maior da massa) até o centro e aperte delicadamente; cubra com a base oposta e aperte bem para selar; dobre cerca de 4cm das laterais (use a fôrma de bolo inglês como referência para o tamanho) e aperte bem as emendas para selar.
Transfira as massas, com a emenda voltada para baixo, para as formas untadas. Cubra com um pano de prato limpo (ou filme) e deixe crescer por mais 40 minutos. Quando faltarem 20 minutos, preaqueça o forno a 180ºC (temperatura média).
Leve ao forno para assar por cerca de 40 minutos até os pães crescerem e dourarem. Retire do forno e, com cuidado, desenforme sobre uma grelha - se o pão ficar na fôrma ou sobre uma superfície lisa pode acumular vapor e amolecer a casca.
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