POLÍTICA / Decifrando MOROLAND: uma investigação sobre o “conservadorismo” de Curitiba
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(Ilustra exclusiva: Cris Vector) |
É bem verdade que a esquerda nunca ganhou uma eleição por lá –o mais próximo que chegou foi com Roberto Requião, em 1986, e com o atual prefeito Gustavo Fruet, do PDT, que tem vice petista. Também é verdade que o Paraná votou majoritariamente em Aécio Neves em 2014 –quase 61% dos votos válidos no Estado, 72,2% na capital, seu recorde nacional. Mas será que Curitiba é mesmo uma cidade “conservadora” ou essa é uma construção que favorece o discurso de direita de que existem redutos reacionários “de primeiro mundo” no Brasil?
Fui até Curitiba investigar o “conservadorismo” da cidade onde Sérgio Moro fincou os pés, e encontrei uma cidade muito mais plural do que imaginava e mais cercada de mitos do que eu supunha. Aliás, a maior parte dos curitibanos que ouvi para esta reportagem aludiu à construção no imaginário dos locais ao longo dos anos, através de recursos de propaganda, de uma cidade um tanto distante da realidade. Alguns mitos: o de que a cidade é “europeia”, quando 27,59% de sua população declara-se preta ou parda, segundo o IBGE; o de que a cidade é “perfeita” urbanisticamente, quando há bairros com esgoto a céu aberto e ruas ainda sem asfalto; e o mais recente, o de que todo curitibano adora Moro.
Contribuiu para a consolidação desta Curitiba “polonesa” e idealizada a transmissão de uma novela das 6 pela rede Globo, Sonho Meu, com externas e longas cenas aéreas na capital paranaense, em declarado tom propagandístico, mas com set de filmagem em uma cidade cenográfica em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Na telinha, uma cidade-modelo com toques de vila do papai Noel, com os atores desfilando casacos de pele e tudo. Sonho Meu foi exibida entre 1993 e 1994, ano em que Jaime Lerner, ex-prefeito biônico na ditadura e duas vezes na democracia e considerado o “pai” da moderna Curitiba, ganhou a eleição para o governo do Estado pela primeira vez. Ou seja, a Globo atuou como cabo eleitoral do político. Hoje seria autuada por propaganda eleitoral antecipada.
Naquele mesmo ano, Dalton Trevisan espetava a Curitiba “fabricada” em um poema publicado no livro Dinorá:
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(O tubo de Lerner) |
O escritor catarinense radicado em Curitiba Cristóvão Tezza escreveu que o curitibano seria, “para defini-lo numa imagem, uma espécie de alemão protestante urbano com uma alma rural, católica e eslava”. Nada mais diferente do que enxerguei na rua: vi uma capital mulltirracial, o que me chamou a atenção, porque desde a última vez em que havia estado lá, em 2008, a visibilidade negra aumentou a olhos vistos.
Continua Tezza: “o curitibano é, historicamente, um conservador. Para fazer um contraponto contemporâneo que reforça essa visão, ouvi recentemente numa entrevista um publicitário afirmar, comentando o resultado de uma pesquisa, que o curitibano consumidor é tipicamente alguém que não tem muito dinheiro, mas tem patrimônio. Em suma, ele não arrisca nada. O curitibano médio, nesta classificação impressionista que fazemos aqui, é alguém que se estabelece em algum lugar com a dimensão da eternidade, com a perspectiva familiar, com o desejo de uma profunda estabilidade da alma. O curitibano, desde sempre, parece que veio para ficar, tanto o alemão e o ucraniano de um século e meio atrás quanto o migrante dos últimos 50 anos, como eu.”
Andando pelo centro da agradabilíssima Curitiba não se percebe absolutamente nada de diferente das outras capitais do Brasil. No calçadão da rua 15 de Novembro, vejo num sábado de sol pela manhã quiosques de candidatos a vereador de diversos partidos: PRB, PPS, Solidariedade, Raiz, Rede e uma barraquinha vermelha do PT, na paz.
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(Lula na Boca nos anos 1980) |
Pergunto a Rodrigo Souza, engenheiro que está se revezando nos cuidados do quiosque, onde se podem comprar camisetas e bonés, se é verdade que Curitiba é conservadora. Partindo de um típico “coxinha”, a resposta me surpreende. “Acho que tem de tudo aqui, não existe cidade de um pensamento só. Talvez bairros, mas uma cidade inteira, não”, diz. “Eu sempre achei que ser conservador ou não tinha a ver com a condição social da pessoa, mas tenho visto mais pobres que são de direita e também ricos que são de esquerda.” Ao lado dele, Cida Cardoso, empresária e pianista, discordou. “Curitiba é mais de direita, sim. Eu atribuo à parte climática. O europeu é mais fechado.”
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(Rodrigo e Cida no quiosque “Morista” em frente à Justiça Federal) |
O que sem dúvida ajudou a reforçar a pecha de reaça sobre Curitiba foram alguns acontecimentos mais ligados à extrema-direita propriamente dita, como a perseguição feita à professora da rede pública Gabriela Viola em julho deste ano. Gabriela acabou afastada da escola onde leciona por ter coordenado o trabalho de um grupo de estudantes sobre Karl Marx em que eles faziam uma paródia do funk Baile de Favela com críticas ao capitalismo. O vídeo foi divulgado no facebook, viralizou e Gabriela passou a sofrer ataques de grupos de direita nas redes sociais. Ela já retornou ao trabalho.
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(A professora Gabriela) |
Minha curiosidade em ambos os casos foi: será que esta mesma reação não se repetiria em outras cidades? Gabriela acha que sim. “Podia ter acontecido em outro lugar. Temos uma elite conservadora, mas não é exclusivo daqui”, opina. Luciana acha que é diferente. “Acho que o ódio e a desinformação são um pouco maiores em Curitiba do que em outras capitais”, diz. O fato é que, após cinco meses do ocorrido, a professora continua desempregada.
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(O estudante Bernardo) |
Bernardo me conta um fato que talvez seja, historicamente, o diferencial reaça de Curitiba: a capital do Paraná foi, durante três dias, capital do Brasil durante o regime militar, no governo de Costa e Silva, entre 24 e 27 de março de 1969. O objetivo era justamente propagandístico –e, reza a lenda, uma forma de agradar a primeira-dama Yolanda Costa e Silva, que era curitibana.
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(O barman Gabriel) |
Por outro lado, ouvi relatos de perseguição no trabalho por conta de posições políticas de esquerda. A bancária R. contou de certo clima de inquisição na Caixa Econômica Federal, onde é pressionada pelos colegas de agência para se posicionar politicamente. “Eles ficam jogando verde: você é contra o golpe? Só tenho três amigos com quem eu posso conversar”, conta. O ambiente é tão pesado que um gerente, após tomar umas e outras em um churrasco da firma, tomou coragem para desabafar com a subordinada, sussurrando em seu ouvido: “Quando eu era jovem, me filiei ao PT”.
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(Tadeo Furtado no Jardinete) |
Por falar em “República de Curitiba”, uma das primeiras coisas que me contaram ao chegar à cidade, como “prova” de sua coxice, é que inauguraram um bar com este nome depois que Lula foi grampeado fazendo alusão ao termo. Só que descubro em seguida que também existe um bar superbadalado chamado… Fidel. Sem estresse. Ouço, porém, que andar com adesivo do PT no carro é garantia de que se terá o veículo riscado. Mas vi pouquíssimos automóveis com o adesivo “eu apoio a Lava-Jato” em minha passagem pela cidade.
A teoria que me parece mais plausível sobre o “conservadorismo” de Curitiba é que ele está mais relacionado às classes mais altas. Assim como São Paulo tem o circuito Higienópolis-Jardins, a capital do Paraná tem o circuito Batel-Bigorrilho, os bairros mais chiques e, aí sim, redutos do reacionarismo e do apoio irrestrito à Lava-Jato e a Moro. O perfil socioeconômico da cidade, com mais de 50% de classe média, também coincide com os adversários do petismo que foram às ruas contra Dilma Rousseff.

O Paraná moderno começa com os imigrantes. Gente pragmática. Pirada em trabalho. Calvinista. Amante da ordem. Zelosa da propriedade. Gente voltada para resultados práticos. Materiais. Palpáveis. A felicidade da classe média está aí: é o consumo. O acesso aos bens de civilização industriais, a grande aventura existencial da classe média.
Me pergunto: e qual classe média brasileira não é louca por consumo? Não seria justo dizer que é só a curitibana. “As classes mais altas acabam dominando seus funcionários. Com meus clientes, já sei que não posso falar abertamente. Mas os funcionários pensam igualzinho aos patrões”, afirma a advogada Ivete Caribé da Rocha, coordenadora da Comissão da Verdade no Paraná. “Acho que o conservadorismo é mais econômico, porque os gays andam nas ruas de mãos dadas tranquilamente, sem ser agredidos”, diz o pequeno empresário Walter de Almeida. “Depende de onde você anda”, rebate o casal de namorados Bernardo, 17, e João, 15. Um caso de ataque homofóbico foi registrado em março do ano passado, no dia em que ocorreu a maior das manifestações contra Dilma no Paraná.
Entrevistei dois cientistas políticos para tentar desvendar o “conservadorismo” de Curitiba e eles tampouco o aceitam incondicionalmente, sem expor nuances. “Não acho que Curitiba seja muito diferente das demais cidades do centro-sul do país”, diz o professor André Ziegmann, da Uninter. “Entendo o orgulho das pessoas em relação à Lava-Jato, mas essa história de ‘República de Curitiba’ aconteceria em qualquer outra grande cidade com uma classe média mais vigorosa que virasse o epicentro da investigação. Talvez a diferença esteja que a centro-direita aqui fez uma gestão inovadora –se está ultrapassada ou não é outra história. Não vejo nenhuma excepcionalidade. O país está dividido, mas não acredito que Curitiba seja a mais conservadora de todas.”
“Esta não é uma pergunta fácil de ser respondida”, diz o cientista político Sérgio Braga, da UFPR. “Curitiba já desempenhou um papel importante e progressista em vários acontecimentos políticos recentes. O PMDB oposicionista foi forte aqui na época da ditadura, o primeiro comício das Diretas foi em Curitiba, a cidade teve papel importante no impeachment do Collor, e o PT quase elegeu um prefeito aqui nas eleições de 2000. Mas foi a única cidade onde Afif Domingos foi o candidato mais votado nas eleições de 1989 e seus habitantes relutam em votar em partidos de esquerda, especialmente no PT.”
“Não acredito, porém, que haja aqui uma classe média reacionária e proto-fascista como a que existe no Rio e em São Paulo, por exemplo, que vota em Bolsonaro, Maluf, João Dória, José Serra e outras figuras do gênero. Basta ver que o deputado Francischini, um parlamentar de extrema-direita responsável pelo massacre aos professores em abril de 2015, nem sequer se candidatou às eleições para prefeito devido à perda de prestígio na cidade. Em suma: há um conservadorismo moderado, mas há espaço para o crescimento da esquerda sim, desde que essa esteja conectada com a realidade da população, não se envolva com setores corruptos da política brasileira, e não se limite a defender políticas públicas assistencialistas, propondo também propostas para segmentos da classe média e da pequena produção familiar.”
Há um fator não abordado pelos dois professores que é constantemente citado pelos que atestam a existência de “conservadorismo” em Curitiba: a questão racial. Sintomaticamente, ao mesmo tempo que endeusa Lerner, a cidade parece “esquecer” de seus engenheiros negros, como Enedina Alves Marques (1913-1981), formada em 1945 pela UFPR e considerada a primeira engenheira negra do Brasil. Ou os irmãos de origem baiana André (1838-1898) e Antonio Rebouças (1839-1874), que idealizaram e construíram a estrada de ferro que liga Curitiba ao porto de Paranaguá, ainda hoje considerada inovadora.
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(Ângela Sarneski) |
Em novembro do ano passado, um vereador do PSC, Mestre Pop, denunciou o colega Zé Maria, do Solidariedade, por fazer uma piada racista na sua frente. Segundo o vereador, Zé Maria falou, ao vê-lo chegar: “Tenho um negócio para contar. Sabe por que o preto vai para a igreja evangélica? Para chamar o branco de irmão”, lembrou Pop. “Aquilo me ofendeu muito. Todos os vereadores ficaram sem graça”. Mas Zé Maria pediu desculpas e o caso acabou arquivado pela Câmara em maio deste ano. A propósito: dos 38 vereadores de Curitiba, só um é do PT.
No domingo 31 acompanho a marcha em defesa de Dilma no reduto de Sérgio Moro, que reúne apenas 200 pessoas sem incidentes graves, a não ser por duas senhoras que, do alto de um prédio, provocam com gestos e um rapaz que passa de bicicleta mostrando o dedo do meio. Nos primeiros protestos contra Temer, o caldo engrossou, com mais de 5 mil participantes segundo os organizadores. À frente, a mesma juventude pulsante que encontrei em minhas conversas no centro de Curitiba.
Felizmente, ao contrário do que eu imaginava –e do que pintam sobre a cidade–, não é verdade que a cidade foi tomada por reaças radicais dispostos a atacar qualquer um que se vista de vermelho, por exemplo, como fizeram com Leticia Sabatella. Em plena rua, deparo com os amigos Antonio Madureira, estudante de Filosofia, e Bruno Sampaio, barman. Ambos vestem camisetas “de esquerda”: Antonio, com um slogan antifascista; Bruno, com a sigla da União Soviética. Andam com total tranquilidade sem serem importunados.
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(Antonio e Bruno) |
Resumo da ópera (de Arame): não saí convencida de que Curitiba é reacionária. Acho que tem de tudo um pouco. Não vi nada em específico que não exista em outras capitais. A força da Globo no Estado certamente exerce uma influência poderosa para a adesão de uma representativa parcela da população ao PSDB, ao antipetismo, a Sérgio Moro e à Lava-Jato, mas nem tanto à extrema-direita. Como tudo conspira a favor, é natural que o centro-direita reine. Há, porém, uma juventude muito interessada em ideias mais progressistas e de esquerda.
A palavra final sobre o tema do “conservadorismo” em Curitiba veio do médico Mario Lobato:
– O Moro nem é daqui. Ele é de Maringá!
Por: Socialista Morena

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