Apagão de dados da covid-19 não foi episódio isolado. Em pelo menos seis ocasiões, governo dificultou acesso ou tentou desacreditar informações de interesse público.
Após ser retirado do ar no dia 5 de junho, o portal do Ministério da Saúde com dados sobre a pandemia só voltou a disponibilizar informações completas sobre a situação da covid-19 após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Não foi a primeira vez que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) dificultou a divulgação de informações de interesse público. Desde o início de 2019, já ocorreram pelo menos seis episódios similares, que incluem sonegação, negação e censura de informações no país.
1) Painel Coronavírus
Em meio à escalada acelerada de mortes por covid-19 no país, o governo passou a atrasar a atualização diária dos dados da doença, passando a divulgação para às 22h, depois do horário dos telejornais e da conclusão das edições impressas dos principais jornais do país.
"Acabou matéria do Jornal Nacional [da TV Globo]”, declarou Bolsonaro, sobre a estratégia. Segundo reportou o jornal O Estado de S. Paulo, a mudança ocorreu após o governo determinar que o número de mortes ficasse abaixo de mil por dia.
Não foi a única estratégia para dificultar a divulgação. O Painel Coronavírus ficou fora do ar no dia 5 de junho. Voltou ao ar no dia seguinte, sem os dados acumulados de casos e mortes, apenas com atualizações diárias.
No dia 7 de junho, o Portal Covid-19, já na sua versão descaracterizada, foi palco de uma confusão em relação aos dados diários. Inicialmente, o Ministério da Saúde divulgou balanço por volta das 20h30 informando 1.382 mortes. Às 22h, entretanto, o número de óbitos foi atualizado para 525, isto é, uma diferença de 857 vítimas.
Após determinação do Supremo Tribunal Federal na última segunda-feira, o site voltou ao ar com os dados completos no dia seguinte.
Mas o governo já vem preparando um novo painel, prometendo disponibilizar dados mais detalhados sobre o quadro da doença nos municípios. No entanto, a versão beta do site ainda carece de recursos do atual Painel Coronavírus, como uma ferramenta de download.
O que diz o governo: "A transparência nos dados é meu principal objetivo. Estou querendo buscar a verdade, e a verdade é evitar a subnotificação, não a hipernotificação”, disse o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello.
2) Inpe
No início de julho de 2019, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontaram que o desmatamento no mês anterior havia sido cerca de 90% maior do que em junho de 2018. Alguns dias depois, o Inpe mostrou que mais de 1.000 km² de floresta amazônica foram derrubados na primeira quinzena daquele mês, um aumento de 68% ao mesmo período do ano anterior.
A segunda divulgação de dados acabou provocando uma reação de Bolsonaro, que reclamou que os dados
estavam fazendo "com que o nome do Brasil seja malvisto lá fora” e disse que suspeitar que o órgão estivesse "a serviço de alguma ONG”.
O Inpe é um instituto federal de pesquisa fundado em 1961, isto é, faz parte da estrutura governamental. Mas, diante dos dados negativos, o governo anunciou que pretendia preparar uma licitação para contratar outro sistema de monitoramento da Amazônia. A reação de Bolsonaro foi refutada pelo então diretor do Inpe, Ricardo Galvão, que acabou sendo demitido.
O que diz o governo: "O desmatamento caiu ao mínimo”, declarou o vice-presidente Hamilton Mourão. "Somos o país que mais preserva o meio ambiente do mundo”, tuitou Bolsonaro.
3) Portal da Transparência
A partir dados do Portal da Transparência, o jornal O Estado de S. Paulo revelou que os gastos do cartão corporativo da presidência entre janeiro e abril de 2020 foram os mais altos dos últimos oito anos, somando mais de R$ 7,5 milhões.
O Tribunal de Contas da União autorizou abertura de investigação sobre as despesas. Após a revelação do gasto elevado, porém, a atualização dos dados do cartão corporativo foi defasada. Lançado em 2004, o Portal da Transparência é um site de acesso livre, no qual todo cidadão pode conferir informações sobre o destino do dinheiro público.
O que diz o governo: "Ao contrário do noticiado, nossos gastos seguem na média de anos anteriores”, alegou Bolsonaro.
4) Lei de Acesso à Informação
Em março, o governo decretou a MP 928 que restringe a Lei de Acesso à Informação. Segundo o decreto, durante a pandemia (período considerado calamidade pública), órgãos federais poderiam ignorar o prazo de 20 dias para dar respostas a pedidos feitos via Lei 12.527/2011, que assegura o direito de acesso a informações produzidas ou armazenadas por todos os órgãos da União, Distrito Federal, estados e municípios.
Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal derrubou trechos da medida provisória. Em junho, segundo revelou o jornal O Globo, o governo ampliou o sigilo de documentos pedidos pela lei. A partir de agora, os pareceres jurídicos emitidos por todos os ministérios e enviados para orientar a presidência nos projetos aprovados no congresso são considerados sigilosos.
O que diz o governo: "O trabalho não pode ser interrompido para que seja realizada a resposta ao cidadão”, afirmou o ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário.
5) Fiocruz
Entre 2014 e 2017, a Fundação Oswaldo Cruz, vinculada ao Ministério da Saúde, desenvolveu o 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Na gestão Bolsonaro, o estudo foi engavetado. Em maio de 2019, o então ministro Osmar Terra (Cidadania) questionou a validade do estudo e a credibilidade da Fiocruz. Os resultados do levantamento, que trata do consumo de substâncias lícitas e ilícitas, contradizem a existência de uma "epidemia de crack” no país, argumento defendido por autoridades do atual governo. Censurado, o estudo só foi publicado três meses depois, em agosto de 2019.
O que diz o governo: "[A Fiocruz] tem viés ideológico de liberação das drogas”, buscou justificar o ex-ministro. "Na minha opinião, as pesquisas estão sendo montadas para provar que não tem epidemia. Agora, anda na rua no Rio. [...] É óbvio para a população que tem uma epidemia de drogas nas ruas. [...] Temos que nos basear em evidências”, acrescentou, sem indicar evidências científicas além de sua opinião pessoal.
6) IBGE
Em março de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divulgou que a taxa de desemprego subiu para 12,4% no primeiro trimestre, atingindo 13,1 milhões de brasileiros. Nos três meses anteriores, que servem como base de comparação, eram 11,6%, totalizando 12,2 milhões de desempregados.
Criado em 1936, o IBGE é um instituto público da administração federal, responsável pelo levantamento de estatísticas econômicas, demográficas e sociais, seguindo padrões internacionais. Ao comentar sobre os dados, Bolsonaro criticou a metodologia do IBGE, usando várias premissas incorretas sobre o trabalho do instituto.
A reação de Bolsonaro foi criticada. Em 2018, na condição de presidente eleito, ele já havia atacado o IBGE. Rafael Diez de Medina, chefe de estatísticas e diretor do Departamento de Estatísticas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), considerou a reação como "perigosa" e levantou temores sobre interferência política num órgão sensível como o IBGE.
"A intromissão do sistema político é um perigo", disse ao jornal O Estado de S.Paulo. “Uma das primícias é a independência das estatísticas e autonomia com o objetivo de evitar a interferência política nessa elaboração. E isso implica seguir os padrões internacionais.”
O que diz o governo: "Não mede a realidade. Parecem índices que são feitos para enganar a população", declarou o presidente, em entrevista à TV Record após a divulgação dos dados. Em outubro de 2018, Bolsonaro já havia classificado a metodologia do IBGE como "farsa".
Por que transparência importa
"Transparência é um direito dentro de uma democracia. Primeiro, impacta a formulação de política pública. Segundo, impacta a sociedade, que se vê como sujeito na política, a quem se deve prestar contas. Por fim, propicia condições de participação política para além das eleições”, destaca Michael Freitas Mohallem, coordenador do Centro de Justiça e Sociedade e integrante do Programa de Transparência Pública da FGV.
Segundo Mohallem, a falta de transparência e a deslegitimação de dados, desrespeitando a autonomia de institutos técnicos, pode corroer as instituições por dentro.
Para Juliana Sakai, diretora de operações da ONG Transparência Brasil, o acesso a informações, decisões e atos é uma obrigação do governo diante da sociedade. "Toda política pública deveria ser pautada a partir de fatos concretos, de dados”, diz.
"Se a divulgação de dados ajuda a avaliar políticas públicas e corrigir rumos, a opacidade é o inverso. Sem informação, fica-se no escuro e não se toma ações a respeito de questões que podem ser muito graves”, avalia o consultor internacional Fabiano Angélico, autor do livro "Lei de Acesso à Informação: Reforço ao Controle Democrático”.
No paralelo à pandemia de 2020, recentemente foi levantada a lembrança da epidemia de meningite na década de 1970. "Na ditadura, não havia informação publicamente disponível sobre a disseminação da doença. Isso levou governantes, gestores, médicos e população a não se prevenir, o que custou vidas.”
Por:
dw
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