LAMENTÁVEL / Bolsonaro despreza os nordestinos. E ele não está sozinho
Foto: Mauro Pimentel/AFP/Getty Images |
A diferença é que Bolsonaro é o presidente da República, e seus preconceitos interferem na economia e no desenvolvimento do Brasil e, claro, do Nordeste, que já vê o crédito minguar. Um levantamento do Estadão revelou que a Caixa Econômica Federal já reduziu a concessão de novos empréstimos para o Nordeste neste ano. Até julho, os estados da região receberam apenas 2,2% do total de novos empréstimos autorizados pelo banco, um percentual muito menor do que os 21,6% em 2018 e do que os 18,6% em 2017.
Bolsonaro também ignorou dados do Tesouro Nacional, alegando que o baixo volume de financiamentos se deve à alta inadimplência dos municípios nordestinos. Mas as informações do Tesouro provam que não há diferenças regionais nos débitos e nem impedimento legal para que os repasses ocorram.
A explicação verdadeira pode ser outra. Em um evento recente na Bahia, Bolsonaro condicionou a liberação de recursos ao apoio dos governadores do Nordeste: “não vou negar nada para esses Estados, mas se eles quiserem realmente que isso tudo seja atendido, eles vão ter que falar que estão trabalhando com o presidente Jair Bolsonaro.”
Bolsonaro nunca engoliu o fato de que, se dependesse do Nordeste, ele não estaria no Palácio do Planalto.
Novo mapa da votação do Bolsonaro no segundo turno (2018).— Jairo Nicolau (@JairoNicolau1) 10 de agosto de 2019
Refeito a partir das sugestões de @vmpeixoto e @fbizzarroneto .
Ficou melhor de ver as tendências. Em laranja, as cidades onde o PT venceu. pic.twitter.com/k8EtHKMENs
Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante a 25ª Reunião do Conselho Deliberativo da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene. Foto: Marcos Corrêa/PR |
O governo Bolsonaro não é adepto das pesquisas científicas e, com frequência, nega a história. Mas ambas mostram que muitos fatores atrapalharam a ascensão dos nordestinos na economia brasileira. O principal, do passado até hoje, é a falta de políticas públicas de educação, saúde e alimentação.
Foi a partir da segunda metade do século 19 que o fosso regional começou a se abrir. E se mantém largo desde então. Em 2010, a renda média do Nordeste equivalia a 55% da renda sudestina. Mas isso não tem nada a ver com a alegada preguiça dos nordestinos de trabalhar. A questão é econômica.
Em meados da primeira metade do século 19, açúcar e algodão, produtos tradicionais da economia nordestina, iam perdendo fôlego. Na década de 1820, eles respondiam por 50% do valor das exportações brasileiras, mas desabaram para 9% em 1890. Surgia, então, o café como principal produto de exportação do Brasil. Produzido principalmente no Rio, Minas e São Paulo, mas atingindo também o Paraná e o Espírito Santo, o café responderia de 50% a até 70% de todo o valor das exportações brasileiras de 1830 até 1960.
A segunda metade do século 19 marca também o aumento no fluxo de mercadorias, capitais e trabalhadores por todo o mundo. É quando ocorre a segunda revolução industrial, que transformou de forma profunda os transportes, as comunicações e a produção. Com a pujança do café, a região sudeste atrairia a maior parte dos frutos dessa modernização que se dirigiam ao país.
Mas a coisa não se deu de forma repentina. Em 1872, o Rio de Janeiro era a maior cidade do Brasil, com 275 mil habitantes. Em seguida, vinham Salvador e Recife, com 120 mil habitantes, aproximadamente. São Paulo, por outro lado, tinha apenas 31 mil habitantes, sendo menor que São Luís, Fortaleza e Cuiabá. Isso mudou após cerca de três décadas. Em 1900, as duas maiores cidades do Brasil eram Rio, com 811 mil, e São Paulo, com 240 mil pessoas. Consolidava-se, assim, o poderio econômico da região sudeste, e o fosso regional começava a se alargar com maior velocidade.
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A explicação para o aumento súbito da população de São Paulo é a imigração europeia, atraída por causa da economia em expansão. Entre 1884 e 1940, desembarcaram no Brasil milhões de italianos e portugueses e milhares de espanhóis, japoneses e alemães. Todos países mais avançados que o Brasil.
Dotados de maior grau de educação (ou “capital humano”, no linguajar dos economistas), essa mão de obra mais qualificada foi crucial para o desenvolvimento do sul e do sudeste do Brasil. Não que houvesse algo de especial nos genes de italianos e alemães. Mas em 1900, enquanto a taxa de alfabetização no Brasil era de 35% da população maior de 15 anos, na Itália era de mais de 50%, e na Alemanha, de quase 80%.
Com o Nordeste em decadência, e com o Sul e o Sudeste em expansão, esses imigrantes – e seus descendentes, com o próprio presidente Jair Bolsonaro, de ascendência italiana – ainda hoje se concentram nas duas regiões mais ricas.
Segundo o censo de 2010, 78% da região sul e 55% da região sudeste se declarava branca, enquanto no Nordeste esse valor é de 29%. Já os pardos – isto é, os mestiços – são 60% dos nordestinos, 36% dos sudestinos e 16% dos sulistas.
Manchete “Nordeste tem novas ‘espécies humanas'”, referindo-se à baixíssima estatura dos nordestinos que passaram fome. |
Desde do final do século 19 estava na moda aquilo que ficou conhecido como “racismo científico”. Isso é, um conjunto de teorias que pregavam a existência de um ranking entre as “raças”, com os brancos europeus ocupando o topo da pirâmide, enquanto as populações pretas e mestiças ocupavam a base.
Brancos europeus são vistos pela sociedade racista da época como mais inteligentes e mais trabalhadores. Os não brancos (pretos, pardos, indígenas), por sua vez, como inferiores, preguiçosos, malandros. Havia até autores como o italiano Cesare Lombroso que davam estofo “científico” às ideias de que pretos e pardos eram inclinados ao crime.
Esses preconceitos facilitavam a ascensão social dos europeus e de seus descendentes, enquanto criavam mais obstáculos para a superação da pobreza das populações não brancas. Logo, o sul-sudeste passa a ser composto em sua maioria pelas “raças superiores”, enquanto os nordestinos, em sua maioria, eram formados por elementos decaídos na visão da elite brasileira.
A decadência do Nordeste era ainda mais violenta para as populações do semi-árido, cuja economia havia se especializado na produção de carne para atender as cidades litorâneas. Já no início do século 19, essa atividade entra em declínio, incapaz de competir com o charque (carne salgada) produzido pelo Rio Grande do Sul. Além dessa queda estrutural, o sertanejo era atingido pelas secas periódicas.
Imagem de uma criança faminta na seca de 1877. |
Rodolpho Theóphilo em sua “História da seca no Ceará” relata como os retirantes comiam plantas e raízes venenosas, que lhes custavam a vida, como também faziam uso de “carnes repugnantes de cães, gatos, morcegos, répteis e urubus”.
Essa massa de gente esfomeada e doente, que esmolava, se prostituía e cometia pequenos crimes nas cidades – muitas vezes para não morrer – passa a ser vista com pavor também pelas gentes das cidades grandes do Nordeste. Na seca de 1915, no Ceará, chegou-se mesmo a criar verdadeiros campos de concentração de retirantes, buscando evitar que eles chegassem à capital Fortaleza.
De 1950 até 1980, por conta do forte crescimento econômico do Sudeste, legiões de nordestinos saem em busca de uma vida melhor no Rio e em São Paulo. Após longas viagens em caminhões pau-de-arara, esses nordestinos pobres, mestiços, com baixa escolaridade (a maioria era mesmo analfabeta) encontravam sustento em profissões de baixa qualificação e reduzido prestígio social. As mulheres, via de regra, se tornavam empregadas domésticas, lavadeiras. Os homens, pedreiros, trabalhadores braçais.
Cearenses comem lagarto para não morrer de fome. Arquivo Jornal do Brasil |
O preconceito já foi até mais ostensivo e desavergonhado, como nos tempos em que não havia preocupação com o “politicamente correto”, que tanto irrita nosso presidente e nossos humoristas medíocres.
Paulo Francis, por exemplo, vez por outra saudado como um grande jornalista brasileiro, em colunas publicadas em grandes jornais sentia-se confortável o bastante para comparar os nordestinos a uma “sub-raça”. Eugênio Gudin, dos mais respeitados economistas no Brasil, também escrevia no jornal O Globo comparando os sertanejos nordestinos a animais, intocados pela civilização.
Hoje não cai bem escrever essas coisas n’O Globo ou na Folha de S. Paulo, mas no mundo sem leis da internet o preconceito contra nordestinos sempre ressurge. Nas eleições presidenciais, por exemplo, a polarização sul antipetista e norte petista fez ebulir o ódio aos nordestinos.
O presidente Jair Bolsonaro, da posição privilegiada do mais alto cargo da República, está constantemente reafirmando e chancelando a xenofobia, mais ou menos evidente, que existe em parte não desprezível de seu eleitorado. Ele consolida um preconceito baseado nessa construção histórica, de origem econômica, social e racial, que são marca do “racismo científico” e que ainda hoje se mantém no inconsciente de muita gente.
Nós, nordestinos, não somos indivíduos aos olhos do presidente – aos olhos de vários brasileiros também não.
Por: Alexandre Andrada, Nayara Felizardo/ theintercept
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