MEIO AMBIENTE / Umbu entra na lista de alimentos ameaçados de extinção

Fruta mais emblemática da Caatinga nordestina, o umbu entrou na lista de alimentos ameaçados de extinção elaborada pela fundação Slow Food. As secas prolongadas e a competição com a criação de bodes estão entre as principais ameaças.
Fruta mais emblemática da Caatinga nordestina, o umbu entrou na lista de alimentos ameaçados de extinção elaborada pela fundação Slow Food. As secas prolongadas e a competição com a criação de bodes estão entre as principais ameaças.

Aonde Pedro vai, os bodes vão atrás. Parece que sabem: é hora de catar umbu. Um a um vão criando fila, até se amontoar na sombra do umbuzeiro, à espera dos frutos que Pedro e Íris, sua irmã, descartarem. Bom, explica Pedro, é o umbu “inchado”, aquele de casca crocante, aroma doce e gosto ácido, quase no ponto de amadurecer. Colher maduro é certeza de estragar logo – daí, vai direto para o bucho do bode. Na safra, o que mais tem é bode gordinho, repicando a sineta através da Caatinga. Dizem que um bicho desses, sozinho, é capaz de comer até 150 frutos por dia. Tanto que, em Uauá, cidade do norte baiano onde a produção de umbu é uma das maiores do país e a população caprina é seis vezes maior que a de gente, foi preciso botar cerca em torno dos umbuzeiros, para manter distantes os animais. Sobretudo os brotos, que até esses o bode come. Por causa dele, quase que o umbu acaba em Uauá.
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Para garantir a colheita, Pedro dos Santos fez como todos na comunidade de Serra Grande, zona rural de Uauá: armou cancela com tal de separar os animais do umbuzeiro centenário, herança do avô, que cresce no quintal. É árvore tão antiga que a copa alcança sete metros de altura – o que, no caso, obriga o sujeito a trepar nos galhos para colher os frutos mais altos. Suspenso a três metros do chão, Pedro explica que existe também o problema da seca, a pior da Bahia nas últimas décadas. E essa, nem cerca resolve. Sem chuva, não só a produção cai como o umbu fica mais ácido e menos carnoso, o que compromete a qualidade do produto final. A sorte de Pedro – como a de milhares de moradores do semiárido – é que o umbuzeiro não se acanha nem na estiagem. Pode produzir menos, mas produz. “Faz cinco anos que não chove, e ainda assim dá umbu”, diz Pedro. “Pra tu ver a potência”.

Maná de gente e de bode nas quebradas mais secas da Caatinga nordestina, o umbuzeiro é o que Euclides da Cunha, em Os Sertões, definiu como a “árvore sagrada do sertão”. “Se não existisse o umbuzeiro, aquele trato de sertão, tão estéril, estaria despovoado”, ele escreveu. De fato: tal é a resistência da árvore que ela frutifica mesmo nas piores estiagens. Isso graças ao que por aqui se conhece como “batata”, um tipo de tubérculo que cresce nas raízes do umbuzeiro, tecnicamente chamado de xilopódio. Cada pé tem milhares deles, escondidos debaixo da terra, rente ao chão. São capazes de armazenar água por décadas, garantindo a sobrevivência tanto da própria árvore quanto das pessoas.

No sertão, uma das formas de matar a sede é bebendo a água contida na batata do umbuzeiro. O cabra bate com uma vara no chão e, pelo som, descobre onde está a raiz. Então cava, tira o xilopódio e arranca a casca: lá dentro há uma massa úmida, fresca e adocicada, a qual basta espremer para tirar a água. A própria batata também é boa de comer: dela se produz farinha – como faziam os índios Kariri –, doce e, agora, conservas. Em Uauá já estão fazendo picles de xilopódios para vender no exterior.
No sertão da Bahia, a colheita do umbu acontece em áreas conhecidas como “fundos de pasto”, terras devolutas onde a Caatinga preservada e que foram transformadas em áreas de uso coletivo. O estado é responsável por 90% da produção nacional de umbu – Foto: Xavier Bartaburu
Salvo as conservas, para as quais existem viveiros de produção, o consumo tradicional da batata do umbuzeiro é costume pouco recomendável – e, por conta disso, cada vez mais raro. É que, a certa altura, descobriu-se que sua retirada matava de vez a árvore. Para uma espécie que já sofria com a fome dos bodes e a falta de chuva, arrancar a raiz era como condená-la definitivamente à extinção. Também a colheita se fazia de modo pouco inteligente, golpeando-se a árvore com uma vara grande de madeira, para fazer os frutos caírem no chão. Daí que alguns galhos se rompiam, o que impedia os frutos de crescer de novo neles. Decepado ano a ano, o umbuzeiro ia produzindo cada vez menos.

Isso mudou em 2003, quando os coletores de Uauá, amparados por um projeto de sustentabilidade, determinaram as novas regras. Agora o umbu se pega como a mão, sem permitir que os frutos caiam no chão. E, quando colhidos, são separados de acordo com o estágio de amadurecimento: há os maduros, de casca amarela e polpa doce, perfeitos para fazer geleia e umbuzada; os verdes, ácidos e crocantes, bons para compotas; e os inchados, nem tão ácidos, mas ainda firmes, com os quais também se fazem compotas, geleias, umbuzadas e ainda outros produtos, como doces. Deixar alguns frutos no pé também virou regra: é para que cotias, tatus e outros bichos se alimentem deles e façam o serviço de espalhar as sementes pela Caatinga. Só o bode é mantido longe, que esse regurgita as sementes nos currais, onde não germinam.
O umbuzeiro frutifica de dezembro a março, logo depois das chuvas. Porém há frutas mesmo na estiagem, graças à água estocada nas raízes.
Na Caatinga nordestina, da qual o umbu – ou imbu, como também dizem – é espécie nativa, a colheita começa sempre no fim do ano. Primeiro vêm as chuvas de outubro, às quais o umbuzeiro responde enchendo-se de folhas e de flores, estas brancas e perfumadas. Nesse momento entram em ação as abelhas sem ferrão, que se encarregam de espalhar o pólen que fecundará outras árvores e multiplicará o número de umbuzeiros pelo sertão. Os frutos surgem logo depois, dando início à safra, que costuma ir de dezembro a março. Talvez abril. Depende das chuvas.

Na safra, a colheita é diária e sempre em família. Começa cedo e só termina perto do meio-dia, quando a sombra do umbuzeiro já não é mais capaz de refrescar o calor incandescente do sol a pino. E não é pouco o que se colhe: “numa manhã, a gente já tirou seis sacos de 45 quilos”, conta Pedro. Na seca, claro, a produção cai. Mas bastam alguns poucos dias de chuva e o umbuzeiro torna a se carregar de frutos. Cada pé, sobretudo se for dos mais antigos, pode render até 300 umbus.

Quando a colheita não é no quintal de casa, ela acontece nos chamados “fundos de pasto”, áreas de uso coletivo às quais a comunidade inteira tem acesso. São antigas terras devolutas que desde os anos 1980 vêm sendo objeto de regularização. É como uma reserva de sertão, na qual a Caatinga cresce densa e preservada, garantindo o pasto para os bodes e a sobrevivência dos frutos que servem de fonte de renda às comunidades locais, como o umbu e o maracujá-da-caatinga. Os fundos de pasto, aliás, são uma das condições para que o umbu de Uauá receba o selo de orgânico.

Uma vez colhido, é quase certo que o umbu vire umbuzada. Pode também ser consumido in natura ou prestar-se a suco, doce, compota ou geleia, mas raras serão as casas no sertão em que, durante a safra, não se sirva um copo ou uma tigela de umbuzada. A receita é simples: basta misturar a polpa do umbu com açúcar e leite, que pode ser de cabra ou de vaca. Se a fruta estiver bem madura, é costume também espremer o sumo direto no leite. O resultado, de um modo ou de outro, é uma espécie de coalhada sertaneja, ácida na medida, mas também doce e refrescante. Uma “sopa agridoce”, na definição do viajante alemão Carl Friedrich von Martius.

Depois da temporada, o umbu há de ser estocado, para que continue alimentando a população pelo resto do ano. E a forma mais tradicional de fazê-lo é como vinagre. Que não é exatamente um vinagre – muito menos um vinho, como também é chamado por aqui –, mas um xarope escuro e espesso que resulta do cozimento e da fermentação da polpa. Já foi comum no passado, mas hoje é raridade. Poucas mulheres em Uauá se dão ao luxo de fazê-lo, pelo tempo que leva e pelo trabalho que dá. Dona Perpétua Barbosa, moradora da comunidade de Serra da Besta, é uma delas. Mas ela vê vantagem: “Quando o vinho é bem moreninho, dura de um ano pro outro. Nem carece botar na geladeira”. A ideia, pela lógica local, é ter o umbu sempre à mão no caso de bater a vontade de uma umbuzada fora de época. O vinagre atravessa o ano ali, na mesa da cozinha, acondicionado em garrafas pet. Aí, basta adicionar leite e açúcar. É costume também misturá-lo com água, para beber como suco.

Ainda se encontra pela zona rural quem também faça marmelada de umbu – que é a nata do cozimento secada ao sol – e o doce de corte feito no fogão a lenha, mas estes são ainda mais raros. É que, desde que os produtores locais começaram a fazer cursos de beneficiamento, no final dos anos 1990, o cardápio de possibilidades contidas no umbu desdobrou-se em muito mais do que se supunha. “A gente nem sabia que existia de compota de umbu”, diz Dejalva dos Santos, enquanto preenche uma dúzia de fracos repletos de umbu com o que chama de “mel”, um preparado que é metade água, metade açúcar.

As mulheres de Uauá também aperfeiçoaram a maneira de fazer doce de corte, aprenderam a fazer doce cremoso e até o suco ganhou injeção de tecnologia: graças a uma ação da Embrapa, o suco de umbu passou a ser produzido tal como o suco de uva no sul do país, ou seja, sem água nem açúcar, apenas por um sistema de aquecimento a vapor. Outra novidade foi a geleia, esta a partir do suco que o umbu libera, cheio de pectina, quando cozido. “A gente jogava a água fora. Não sabia que servia pra alguma coisa”, lembra Jussara Dantas, a principal articuladora da cooperativa local com o mercado.
As comunidades rurais de Uauá, Curaçá e Canudos, no norte da Bahia, foram as primeiras a processar o umbu com fins comerciais. Elas o fazem em minifábricas de beneficiamento espalhadas pelo sertão, onde o umbu é transformado em compotas, sucos, geleias e doces – Foto: Xavier Bartaburu.
A cooperativa atende pelo nome de Coopercuc (Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá), entidade fundada em 2004 que acabou se tornando a grande responsável por levar o umbu para fora do sertão – e do Brasil também. Seus membros foram os primeiros no país a processar o umbu: primeiro na cozinha das casas, depois em minifábricas espalhadas pela zona rural. Hoje são 18 unidades de processamento, uma em cada comunidade. Na de Serra Grande, onde vive Pedro dos Santos, seis famílias se revezam de segunda a sábado para produzir geleia, compota, suco e o que chamam de “pré-polpa” – a polpa cozida com a semente que será transformada em doce na fábrica central de Uauá. Essa polpa, armazenada em bombonas de plástico azul, chega a durar um ano.

As primeiras minifábricas foram construídas com o apoio da Slow Food, entidade italiana que reza a cartilha da ecogastronomia. E que, no caso do umbu, ajudou não só financeiramente mas também, como forma de chamar a atenção da comunidade gastronômica mundial, incluindo a fruta na Arca do Gosto – catálogo mundial de alimentos ameaçados de extinção. O umbu de Uauá, porém, já havia atraído a atenção de gente de fora muito antes disso. Precisamente em 1986, quando três freiras apareceram por ali dispostas a incentivar a geração de renda. Dali para os cursos de beneficiamento e a produção de sucos e doces foi um pulo. Difícil mesmo era vender. “A gente ia até Salvador oferecendo os produtos. Botava mesmo embaixo do braço”, conta Jussemar Cordeiro da Silva, um dos pioneiros na região.

Só quando sentiram a necessidade de emitir nota fiscal é que veio a ideia de criar a cooperativa. Primeiro eram só algumas dezenas de produtores de Uauá; depois é que foram chegando os de Canudos e Curaçá, municípios vizinhos. Hoje são 200 associados. Um dos triunfos alcançados é a eliminação dos intermediários – e o consequente aumento do valor pago aos produtores, quase o dobro do que era antes. Outra conquista é a inserção dos produtos da cooperativa (que levam a marca Gravetero) em 60 lojas do Pão de Açúcar espalhadas pelo país. E há, ainda, a exportação do umbu baiano para países como Alemanha, França e Itália. “Como os europeus estão acostumados ao sabor ácido, o umbu teve muita aceitação por lá”, conta Jussemar.

Hoje a produção anual da Coopercuc anda na casa das 170 toneladas, o que faz do umbu a segunda maior fonte de renda em Uauá, depois do bode. Poderia ser maior, claro, se não fosse a seca. E não só ela: “A gente só aproveita 20% da capacidade produtiva da árvore”, revela Jussemar. O resto, ele explica, ou cai no chão, ou o bode come ou se perde na mão dos atravessadores. Aumentar a produtividade, portanto, será um dos focos da Coopercuc nos próximos anos. O objetivo é claro: reduzir o preço final, ainda acima da média dos doces. “Queremos competir com a goiabada”, afirma Jussemar, cheio de planos.

O fim da seca, nesse caso, seria o impulso que falta. Por mais tenaz que seja o umbuzeiro, um pouco a mais de água já faria uma tremenda diferença. “Em janeiro choveu 100 milímetros, e a produção já melhorou 50%”, anima-se Jussemar. Os pés ficam carregados, a polpa mais carnuda e até o gosto perde um pouco da acidez, potencializando a doçura da fruta. Se a vida nas comunidades de Uauá já melhorou um bocado por conta do umbu, mesmo durante a pior estiagem dos últimos anos, que dirá com a chuva. Dona Perpétua, a fazedora de vinagre, é outra que se anima: “A sorte da gente é esse trabalho do imbu. Agora só falta Deus mandar chuva. Nós ia produzir era muito”. Fonte: National Geographic do Brasil
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